Post de Cocielo abre debate sobre regulação de vídeos na internet
Diferentemente do cinema e da TV, conteúdo do Youtube não sofre controle de agência
POR JAN NIKLAS / LEONARDO LICHOTE 08/07/2018 4:30
RIO - O caso do post racista publicado pelo youtuber Júlio Cocielo provocou reações no país inteiro e chamou a atenção para a necessidade de uma resposta que vá além do calor e da velocidade das polêmicas digitais. Ou seja, um debate sobre como a sociedade pode se postar frente a um conteúdo que hoje não se submete a regulação nenhuma, diferentemente do material audiovisual veiculado em cinemas ou na televisão. Mais do que isso, um conteúdo dirigido a uma audiência em sua maioria de crianças e adolescentes.
— As crianças, que no passado sonhavam em ser jogadores de futebol, hoje querem ser youtubers. Eles são a Xuxa e a Angélica de hoje, sem dúvida — diz Bruna Castanheira, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV. — Mas a forma de consumir mudou bastante. Na TV aberta a configuração era muito diferente. Normalmente havia uma TV na sala, que a família assistia junto. Hoje a criança pega o celular ou o tablet da mãe, do pai ou dela mesma e entra num universo que vai ter uma produção feita por qualquer pessoa. É um consumo bem mais amplo e individualizado.
As crianças, hoje, assistem a youtubers como Cocielo. Com 16 milhões de assinantes em seu canal, Cocielo é apontado pelo YouTube como a oitava celebridade mais influente do Brasil em 2017, entre atores e apresentadores de TV. Por isso, seu post sobre um jogador francês (“Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”) gerou ondas de repúdio. Patrocinadores tiraram do ar campanhas com ele e romperam contratos; manifestações do Brasil todo, de nomes como Mano Brown, repudiaram a “piada”; Cocielo apagou de sua conta no Twitter cerca de 50 mil posts antigos (igualmente racistas, homofóbicos ou misóginos); outros youtubers fizeram seus “mea culpa”, em efeito cascata.
'AMADURECI', DIZ FELIPE NETO
O Ministério da Justiça estuda ampliar para o material audiovisual veiculado na internet a classificação indicativa que já vigora para o cinema e a televisão — ou mesmo para os games. A medida enfrenta a dificuldade tecnológica de lidar com uma produção gigantesca e descentralizada, como nota o youtuber Felipe Neto, um dos mais populares do país e que também já sofreu críticas pelo conteúdo de seu canal. Ele chama a atenção para o fato de muitos youtubers brasileiros morarem fora do país e transmitirem de lá. Mas vê alternativas:
— Eu aplico a classificação indicativa no meu canal e todos os meus vídeos que possuem palavrões recebem a classificação +13 no título. É uma iniciativa minha, que adoto para ajudar os pais que não querem que seus filhos tenham acesso a este tipo de linguagem.
Para a professora e diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, Ivana Bentes, uma classificação indicativa seria bem-vinda, sobretudo uma regulação para a publicidade nas novas mídias:
— Se um youtuber fala e tem audiência infantil, ele não pode dizer qualquer coisa.
Ivana acredita, porém, que a maior regulação — e que já se aplica — é a social. Ou seja, aquela apontada espontaneamente pela própria sociedade a partir de seu amadurecimento e da manifestação clara do que ela não admite. A partir daí, defende ela, o debate em torno da regulação das novas mídias deve se desenvolver para responder a esse novo patamar de valores.
— A principal questão no caso da declaração racista de Cocielo é que o que era considerado piada, brincadeira, deslize se tornou inadmissível socialmente. É um enorme avanço. A sociedade brasileira, as empresas, os seguidores do youtuber e pessoas comuns estão reagindo ao racismo velado e ao racismo institucional que criam desigualdades extremas no Brasil. Essa é a primeira e mais importante regulação, a social.
Felipe Neto diz que reformulou seu canal a partir das críticas que recebeu, no que seria um reflexo direto desse caminho de amadurecimento da sociedade:
— Não reproduzir discurso misógino, racista ou homofóbico é o mínimo, não importa a idade do público que consome seu conteúdo. Aprendi isso na prática. Já são oito anos produzindo para o YouTube e, quando comecei, todo esse debate não existia. Utilizei as críticas para amadurecer, aprender, estudar o assunto e compreender como eu replicava ideias pré-concebidas sem nem sequer perceber.
Espaço por excelência da produção audiovisual veiculada na internet, o YouTube se exime de responsabilidades com relação ao controle do teor de seu conteúdo ou qualquer tipo de classificação indicativa. Em nota enviada para esta reportagem, a empresa diz que suas diretrizes explicam que a plataforma foi projetada para pessoas maiores de 18 anos. Além disso, ela oferece recursos como ferramentas e conselhos aos usuários — como o Modo Restrito, que impede a exibição de vídeos potencialmente adultos, ou a possibilidade de se denunciar conteúdos impróprios:
“Quando somos informados de uma conta que pertence a alguém que é menor de idade, encerramos a conta de acordo com nossas Diretrizes”, diz a nota. E continua: “Para famílias com crianças mais novas, oferecemos um aplicativo gratuito, o YouTube Kids, desenvolvido especialmente para atender ao público infantil, com filtros de conteúdo e curadoria para que somente o conteúdo ideal às famílias chegue aos usuários.”
A advogada Sandra Rogenfisch, da área de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia do escritório Vinhas e Redenschi Advogados, contesta a percepção de que o YouTube não tenha responsabilidades sobre o que veicula:
— Podemos lembrar o que aconteceu no Facebook com o caso da eleição de Trump (notícias falsas veiculadas pelo Facebook sem nenhum controle teriam tido influência no resultado). Inicialmente (Mark) Zuckerberg declarava que não respondia pelo que estava ali, que só oferecia a plataforma, mas depois teve que mudar sua postura.
MARCAS TERÃO MAIS CAUTELA
Sandra reconhece a dificuldade de o YouTube fiscalizar esse volume de imagens. Porém, acredita que a inteligência artificial de reconhecimento de imagens da plataforma possa ser usada para ajudar nesse controle:
— Não que o YouTube vá classificar vídeo por vídeo, mas sabemos que eles têm tecnologia pra verificar o material impróprio. Mas não seria para fazer censura ou proibir, mas sim para atuar junto às pessoas que estão postando esses vídeos, num processo de educação — diz ela. — O discurso de que é uma mera plataforma é um pouco antiquado e desgastado. O YouTube devia ter a percepção de que a sociedade já entendeu que qualquer regulação de conteúdo sem que eles se comprometam é enxugar gelo.
O Brasil é especialmente sensível à questão. Segundo pesquisa realizada pelo Google (que é dona da plataforma de vídeo), com o Instituto Provokers, 95% dos brasileiros conectados acessam o YouTube ao menos uma vez por mês, e a média de tempo de consumo de vídeo do Brasil é a terceira maior do mundo. O levantamento aponta que a quantidade média de horas por semana assistidas de vídeos online pelos brasileiros passou de 8,1 em 2014 para 15,4 em 2017, um crescimento de 90,1% em três anos.
Outra pesquisa do Google revelou como tem aumentado a presença dos youtubers na lista de personalidades consideradas influenciadores. Na lista final cinco eram youtubers: Whindersson Nunes ficou em 1º lugar e Júlio Cocielo ficou em 8º, atrás de nomes como Lázaro Ramos e Taís Araújo.
O apelo desses nomes junto às marcas, portanto, é enorme. Segundo uma fonte do setor, a menção “natural” que um youtuber faça de um produto num vídeo varia entre R$ 60 mil e R$ 350 mil, dependendo do número de seguidores e de interação. Mas o episódio de Cocielo parece anunciar um cuidado maior das empresas em se associar a esses personagens.
— Certamente haverá mais cautela. Quando um escândalo envolvendo a celebridade acontece, acaba refletindo na reputação da marca — diz Ana Erthal, da ESPM Rio, responsável pela pesquisa de Digital Brand Experience. — Mas esse modelo de influenciadores digitais e youtubers é recente e ainda válido. Hoje, as agências de publicidade ficam minerando os perfis, e acompanhando, para encontrar pessoas que possam representar a identidade de uma marca. E mesmo que a marca não esteja envolvida com o problema dos personagens, ela vem a público dar explicações, a exemplo das marcas ligadas ao Cocielo.
'UMA DISCUSSÃO DE EDUCAÇÃO'
A ideia, portanto, de que a sociedade — mais do que o Estado, o YouTube ou as grandes marcas — assuma a frente desse debate é reforçada por Beth Carmona, consultora na área de produção e mídia infantil e diretora geral do Comkids (produtora de conteúdo para crianças e adolescentes):
— É muito difícil regular essa produção. O debate no setor tem sido muito em cima da media literacy, ou seja, a leitura crítica da mídia, o exercício com as crianças desse olhar crítico, inclusive ter isso como disciplina dentro das escolas. É uma discussão de educação, sobretudo.
Colaborou Bruno Rosa
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