FRAGMENTO DA CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL, de Pero Vaz de Caminha
E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar (...)
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos www.nead.unama.br 4 cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera.
E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
(...)
Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
[http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf]
Pedro Fernandes Sardinha, ou Pero Sardinha, (Setúbal, 1496 – Capitania de Pernambuco, 16 de junho de 1556) foi um sacerdote português, designado em 1551 foi o primeiro bispo do Brasil Chegou à cidade do Salvador na Bahia e tomou posse do cargo no ano seguinte. Em 16 de julho de 1556, seu navio naufraga na foz do rio Coruripe, a seis léguas do São Francisco. Os passageiros são capturados pelos índios caetés que, no arroio de S. Miguel das Almas, os matam e comem, conforme relatos da época:
«Em uma enseada, junto a este rio, alguns anos depois, sucedeu o triste desastre do naufrágio do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando nela à costa, foi cativo dos índios Caetens, cruéis e desumanos, que conforme o rito da sua gentilidade, sacrificaram à gula, e fizeram pasto de seus ventres, não só aquele santo varão, mas também a centena e tantas pessoas, gente de conta, a mais dela nobre, que lhe faziam companhia voltando ao reino de Portugal.»
VASCONCELLOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu de Estado do Brasil (...). Lisboa : na Officina de Henrique Valente de Oliveira impressor del Rey N.S., 1663, Livro I, n.º 46, p. 32.
O Guarany é um romance histórico escrito por José de Alencar, desenvolvido em princípio em folhetim (publicado no Diário do Rio de Janeiro em 1857).
A devoção do índio goitacá Peri (termo oriundo do tupi antigo piripiri, uma espécie de junco) à Cecília de Mariz (Ceci, termo derivado do tupi antigo sasy, "a dor dele". pois o amor de Peri não é correspondido), tampouco o amor de Isabel por Álvaro, e o amor deste por Cecília. A morte acidental de uma índia aimoré por dom Diogo e a consequente revolta e ataque dos aimorés, tudo isso ocorrendo com uma rebelião dos homens de dom Antônio de Mariz, liderados por Loredano, homem ambicioso e mau-caráter, que deseja saquear a casa e raptar Cecília.
Álvaro, que já conhecia o amor de Isabel por ele e também já a amava, se machuca na batalha contra os aimorés. Isabel, vendo o corpo do amado em seu quarto, tenta se matar asfixiada junto com o corpo de Álvaro. Quando o vê vivo, tenta salvá-lo, porém ele não permite e morrem juntos.
Durante o ataque, dom Antônio, ao perceber que não havia mais condições de resistir, incumbe, a Peri, salvar Cecília, após tê-lo batizado como cristão. Os dois partem, com Ceci adormecida, e Peri vê, ao longe, a casa explodir. A Cecília, só resta Peri.
Durante dias, Peri e Cecília partem para um destino desconhecido e são surpreendidos por uma forte tempestade, que se transforma em dilúvio. Abrigados no topo de uma palmeira, Cecília espera a morte chegar, mas Peri conta uma lenda indígena segundo a qual Tamandaré e sua esposa se salvaram de um dilúvio abrigando-se na copa de uma palmeira desprendida da terra e alimentando-se de seus frutos. Ao término da enchente, Tamandaré e esposa descem e povoam a Terra.
As águas sobem, Cecília se desespera. Peri, com uma grande força, arranca a palmeira e faz, dela, uma canoa para poderem continuar pelo rio, deixando subentendido que a lenda de Tamandaré se repetiu com Peri e Cecília.
A IDEALIZAÇÃO DO ÍNDÍGENA NO ROMANTISMO BRASILEIRO
Iracema, romance de José de Alencar, é escrito em 1865, pouco depois de proclamada a independência da Brasil e nasce do desejo de construção de uma literatura identitária com feições nacionais. Se Portugal tinha uma origem gloriosa derivada de atos heroicos de personagens históricos atestada pela literatura, o Brasil também queria ter a sua. Contudo, não poderia ser o mesmo tipo de herói a construir nossa história. Com esse sentimento, o indianismo se desenvolve no Brasil: na busca pelo herói nacional que teria dado origem à nossa pátria, nasce o mito indianista. É importante ressaltar que a escolha do índio como herói nacional em vez do negro se dá por diversos motivos políticos, econômicos e religiosos: a desumanização do negro e a crença de que o negro não era passível de salvação divina, eram discursos extremamente convenientes em um período de escravização como esse, porque evitam que a coletividade se mobilize em favor do estigmatizado. Dito isso, retomando a questão do contexto em que nasce o indianismo brasileiro, cabe dizer que este contexto explica e justifica muitas das características da literatura a que dá origem: a tentativa de descrever a cultura indígena, a idealização do índio, da forma como a nação foi construída, o uso da linguagem indígena (que indica a valorização do que é nacional), a valorização da natureza local, etc. É nesse ponto que, em certa medida, a nossa literatura nacional se distancia da europeia: buscando a sua identidade.
[https://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Iracema-e-o-Mito-Sacrificial/53331953.html]
FRAGMENTO DE IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhede palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais frescado que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as Agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturbasse.
Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.
[http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/iracema.pdf]
O tema da pintura de Jose Maria de Medeiros vem de um poema brasileiro de José Martiniano de Alencar. Ambientado no século XVI, ele narra uma história de amor fictícia entre Iracema, uma mulher indígena Tabajara, e Martim Soares Moreno, um colonizador Português. Este trabalho de Medeiros é considerado a primeira imagem de Iracema e foi exibido no Rio de Janeiro em 1884. Embora tenha sido inicialmente recebida com desaprovação, a vívida descrição da paisagem pelo artista incitou a Academia Imperial de Belas Artes a adquirir o quadro. Posturas similares são observadas em outras obras que, como a pintura de Medeiros, procuraram retratar versões idealizadas dos povos indígenas da América do Sul.
Abaporu foi pintado em óleo sobre tela, em janeiro de 1928, por Tarsila do Amaral (1886-1973) como presente de aniversário ao escritor Oswald de Andrade, seu marido na época. O nome da obra foi conferido por ele e pelo poeta Raul Bopp, que indagou a Oswald ao ver o quadro: "Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?" Os dois escritores escolheram um nome para a obra, que veio a ser Abaporu, que vem dos termos em tupi aba (homem), pora (gente) e ú (comer), significando "homem que come gente", ou seja: canibal, antropófago Tornou-se uma referência para a criação da Antropofagia modernista brasileira, ou Movimento Antropofágico, que se propunha a deglutir a cultura estrangeira e adaptá-la ao Brasil. A base era o Primitivismo das vanguardas europeias.
IRACEMA
(Chico Buarque)
Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar
É Iracema da América
[CD As cidade, de Chico Buarque. 1998]
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter é um livro publicado em 1928 por Mário de Andrade, considerado a sua obra-prima. Escrito em pouco tempo mas fruto de pesquisas anteriores que o autor fazia sobre as origens e as especificidades da cultura e do povo brasileiro, narra a história do herói índio Macunaíma desde seu nascimento na selva até sua morte e transfiguração, uma trajetória movimentada e aventuresca em que é ajudado por seus irmãos e outros personagens, em busca de uma pedra mágica, o muiraquitã, que havia recebido de seu grande amor, Ci, a Mãe do Mato, mas que fora perdida e acabara em posse de Piaimã, um gigante comedor de gente que vivia como abastado burguês em São Paulo.
(Caetano Veloso)
Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.
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