'O ataque às artes é subproduto de linchamentos políticos', diz teórica
A descontextualização de textos e imagens para uso político não é um privilégio de conservadores, diz a pesquisadora acadêmica Ivana Bentes. Ela foi diretora da Escola de Comunicação da UFRJ (2006-2013), onde atua no programa de pósgraduação, se dedica a relações entre ética e estética na arte e no audiovisual e estudou com profundidade a obra de Glauber Rocha.
O jogo, porém, é assimétrico, diz, sobre protestos que atuaram contra
trabalhos criativos no semestre passado.
Foram ações da direita e de ativistas à esquerda: grupos políticos e religiosos
investiram contra performance no MAM após o pé de um artista nu ser
tocado por uma criança. Do outro lado, houve ataques a obras acusadas de
racismo e a um filme sobre o conservador Olavo de Carvalho.
Folha - Diversos protestos pediram cancelamento de obras artísticas nos últimos anos, em especial no último semestre. Os argumentos se basearam em fragmentos, como fotos e vídeos. Quais os riscos nesse processo?
Ivana Bentes - As ações [de conservadores] não foram espontâneas. Esse tipo de obra, com nudez, sobre sexualidade, tem acontecido ao longo de anos sem maiores reações. Os ataques seriais às artes foram ações induzidas por grupos conservadores, o MBL, a bancada evangélica, que querem se posicionar no jogo eleitoral. São incitadores da indignação alheia, explorando a boa fé de quem acha que está protegendo criancinhas. Para eles é fundamental criminalizar artistas e instituições e carimbá-los associando a palavra "arte" aos rótulos "pedofilia" e "pornografia".
Como fazem isso?
Descontextualizando as obras, as propostas e ficando com as imagens na sua literalidade, apresentadas em fragmentos. Esse procedimento é ainda mais perverso, pois o artista que fez a performance "La Bête" vira "o peladão do MAM", e o fato de uma criança interagir com a performance vira "pedofilia", o que incita aos piores instintos: o linchamento. Estamos em plena memética da distorção e das fake news. Outro procedimento é o enxameamento. A convocatória para todos irem às páginas do MAM, do artista e xingar, ameaçar, linchar.
Há outros contextos em que isso acontece, como quando ativistas negros pedem o cancelamento de uma peça tomando por base fotos ou sinopse?
A descontextualização de obras, textos, imagens, pode ser utilizada por qualquer campo ou grupo social, não é privilégio dos conservadores. Mas não vi nenhum tipo de campanha de ódio feita por outros ativistas. O discurso de ódio e demonização massivos que começou no campo da política e foi feito pela televisão se estendeu pelas redes e vimos inclusive grupos minoritários em processos autofágicos, de minorias, grupos de esquerda, atacando uns aos outros.
No caso da TV, refere-se a algo específico? Globo News,
frequentemente acusada de estar à direita, debateu os casos de
protestos e cancelamentos no programa "Entre Aspas" dando voz
ao artista Nuno Ramos e ao filósofo Eduardo Wolf sobre o tema. E
tratou esse contexto como tentativa de censura.
Estava me referindo aos processo políticos pré e pós impeachment, Lava Jato
etc. O que me parece é que os justiçamentos em tempo real feitos pela TV e
noticiário criaram um padrão de linchamento que se expandiu para outros
campos, como o das artes. Os grupos de extrema direita e conservadores
aprenderam a pedagogia do linchamento político. O ataque às artes é
subproduto dos processos de linchamento políticos. Uma pedagogia do
linchamento.
O afastamento William Waack da Globo após o vazamento de um
vídeo em que classifica um buzina insistente como "coisa de preto"
teria relação com esse fenômeno? Existe alguma possibilidade de o
racismo expresso naquele fragmento ter contexto que o absolva?
Nós vivemos em um mundo em que não é possível ter dupla moral: uma
privada e outra pública. Existe uma exigência cada vez maior para que a vida
privada esteja em sintonia com o que se faz e o que se defende em público.
O caso de assédio de José Mayer e o caso de racismo de Waack se tornaram
indefensáveis porque vivemos em uma sociedade que produziu um novo
patamar para o que é "tolerável", principalmente depois da Primavera das
Mulheres e da constatação tardia de que, sim, somos um país racista.
Uma evidência que ficou latente ou mal disfarçada pelo mito da feliz
miscigenação das raças. Essa radicalização é necessária. Sem isso não há
mudanças. Os dois comportamentos (Mayer e Waack) não provocariam nota
pública da maior emissora de TV nem demissão se fosse há dez anos. Mas o
Brasil mudou, e esse processo é doloroso para os que tinham privilégios!
O caso do Mayer não se encaixaria aqui, pois se tornou público
com um depoimento. O vídeo do Waack pode ser considerado um
fragmento, tal qual a foto de "La Bête"?
São casos distintos. O fragmento do Waack é uma frase racista dita por
alguém branco, bem-sucedido e com notoriedade suficiente para que a sua
publicização não possa passar impune. Não é descontextualização, qualquer
pessoa pública no Brasil que expressar racismo perde a credibilidade para
parte da sociedade. Mudou a régua. Não dá para dizer que a histeria diante de
"La Bête" e o ataque conservador a Judith Butler são o mesmo tipo de
discurso que levou à demissão de Waack.
Não temos um artista pedófilo, não houve pedofilia nem ato de violação de
direitos em um caso (nem de fato nem de direito, segundo o Ministério
Público), mas temos um apresentador que cometeu racismo. Ou a gente
entende que são processos assimétricos, ou ficaremos achando que o país
estaria mais tranquilo se não se destampasse o debate LGBT, feminista, das
cotas.
A sra. apontou identidades convergentes em filmes que retrataram
o sertão e as favelas, e em um artigo empregou termos como
"cosmética da fome" sobre a forma como a pobreza era tratada.
Como vê retratos recentes sobre a relação casa grande e senzala,
em que se encaixam títulos como "Que Horas Ela Volta", "Casa
Grande" e "Vazante"?
Não é possível dissociar estética de ética, esvaziar um filme de seu caráter
político, mesmo que ele não se paute nas reivindicações de movimentos e se
proponha ser um filme para se ver comendo pipoca. A polêmica em torno de
"Cidade de Deus" explodiu em 2002: um filme com linguagem potente, mas
que transformava pobres em assassinos por natureza e podia ser visto como
sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo
consumível de pobres se matando entre si.
"Vazante", de Daniela Thomas, é esteticamente suntuoso, em tudo denota
arte, as contraluzes, a reconstituição histórica primorosa, com questões
sensíveis mas cuja estética naturaliza um sofrimento atroz e oferece o horror
da escravidão ornado como em uma "natureza morta".
Se para uns é arte, para outros é a carne mais barata do mercado. Posso
gostar de "Vazante" (como de "Cidade de Deus"), mas não desqualificar a dor
dos outros. Se tem alguém que tem que entender a radicalidade de meu irmão
e irmã cujos antepassados foram escravizados e que são mortos a bala pela
cor da pele, somos nós.
"Que Horas Ela Volta?" vai na direção oposta, percebe
a outra partilha do sensível. Expressa o desconforto na sua forma potente. O
desconforto dos brancos, dos patrões, das madames.
FOLHA DE SP. 5.1.2018
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