APROPRIAÇÃO
CULTURAL
O
conceito de apropriação cultural, embora controverso, tem implodido
o mito da democracia racial brasileira, já que coloca em debate as
profundas tensões de cor, classe e credo no país.
Os
colonizadores portugueses não apenas roubaram a terra dos autóctones
da América, dizimaram nações, confinaram os índios a áreas cada
vez menores. Da África, trouxeram em grilhões homens, mulheres e
crianças que submeteram a trabalhos extenuantes, tortura e
humilhação. Além da liberdade, privaram-lhes da língua, das
crenças, dos costumes, impondo-lhes além da fé católica e da
cultura branco-europeia, uma terra inóspita que transformaram. Nela,
punidos eram todos os que não se submetessem à assimilação, desse
modo, era-lhes negado o que define um povo: sua cultura.
O
uso de elementos identitários de um grupo historicamente
marginalizado por outro (ainda mais se em posição privilegiada),
pode ser entendido por muitos, como uma vitória sobre o dominador.
Será uma conclusão falsa, contudo, se tal cultura for vista como
“aceitável” ou mesmo “superior”, apenas pelo fato de
“agradar” à elite. Não foi o que ocorreu com o Blues, Jazz,
Soul, Rock, Reggae, Samba, Axé, Rap, Break dance e o Passinho? Não
são essas expressões artísticas originárias das periferias,
inicialmente desprezadas e perseguidas até serem “adotadas”
pelos brancos e integrarem o “mainstream”?
O
Brasil é resultado de mudanças histórias e interação social
complexas, entretanto, recusar que isso se deu com violenta
perseguição à cultura negra é negar o que nos constitui. Se a
capoeira, o samba, a fé do povo de rua/dos terreiros existem ainda,
deve-se não apenas ao sincretismo (sagaz estratégia de aparente
conciliação entre a cultura do dominante e dominada), mas à
resistência que resultou no legado e tradição obtidos com grande
luta. Embora o intercâmbio com outros imigrantes tenha também
definido o ser brasileiro, -- o que nos destitui de um caráter
único, como apontou o escritor Mario de Andrade em seu romance
Macunaíma, – esvaziar/banalizar os elementos identitários dos
grupos desde sempre explorados e excluídos, é atualizar o
desrespeito à ancestralidade negra e ameríndia.
Apropriação
cultural não diz respeito a “individualidades”, trata-se de um
fenômeno social amplo de negação e apagamento da memória/história
do outro. Trata de contextos capitalistas em que uma “indústria”
banaliza, esvazia, simplifica e desprestigia uma cultura, se essa não
estiver a serviço de uma classe privilegiada. É preciso, portanto,
valorizar as múltiplas raízes brasileiras. Exigir dos nossos
governantes um ensino menos eurocêntrico – com foco nas nossas
demais matrizes - é fundamental. Dar atenção às periferias e
suprir suas demandas por mais educação, arte e cultura são um
primeiro passo a permitir que o brasileiro expresse com plenitude sua
identidade (não como mercadoria de exportação). Conferindo
protagonismo aos reais fundadores da arte/cultura inventiva e plural
do Brasil, impedir-se-á a apropriação predatória e cosmética
pelo mercado dos nossos bens também simbólicos, meio de garantir o
fortalecimento dos laços comuns, do sentido de pertencimento o que
confere dignidade, respeito e a autoestima ao se reconhecer
brasileiro.
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